sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

KATMANDU



Aqui
ao pé da noite
lembrado das canoas e dos rios
tange o violino agreste
um taru peregrino
que tem para te oferecer
um ramo de segredos.

Zedomar

INGRATIDÃO


Deixa que cada dia te cerque de luar para que no luar
A aventura possa voar.
Não fujas nunca para o sítio inóspito que é o sítio onde ninguém existe.
Chora, grita, berra até que uma estrela se desperte ou a chuva caia.
Mas não atires pedras.
Sobretudo nunca tentes morder em ti própria.
Porque há sempre alguém que gosta de ti....

ZEDOMAR

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

RITINHA


Não havia contas, nem esperanças
Muito menos projectos de crianças
Quando, inopinadamente e sem aviso,
Deixaste a mamã a perder o siso.

Era tudo um desejo, uma vontade
Mas tudo cercado de temores, de ansiedade
De tal forma que viajaste pela América,
Antes de nascer…sorte quimérica!

E como da certeza veio a notícia
Foi um ai, um soluço, uma delícia
Esperar pelo dia certo, o dia da nascença
Que foi para todos nós a infinita recompensa!



AVÔ ZEDOMAR

EUGÉNIO DE ANDRADE




Deixas as palavras muito tristes
Muito tão tristes como se perdessem um padrinho
Que em cada manhã as acordava de mansinho

Porque tu dormias com elas ao colo
E com elas tecias cálices e corolas
E desenhavas canteiros
Para as flores de todos os jardins.
E sobre a copa das florestas
Vazavas perfume temperado de harmonias
Enquanto pelas ruas desenhadas em franja
Um movimento, um alarido, uma festa colorida
De rosas, de verde, de laranja e melodias.
Tudo era sempre a força e o feitio das palavras nascidas
Da fúria maternal, suave, de geleia
E tudo calmo e transparentes como lua cheia.

Os engenhos rudes e mecânicos
Atiraste sempre para a outra margem
E para eles olhavas como quem olha
Para a horda bárbara e tirânica
Incapaz de perceber
Ou de saborear
A aragem das palavras a desabrochar

Escolheste um dia de Junho
Um dia suave e morno
Um dia vestido de azul do mar ao firmamento
Para adormecer mais suavemente
Um sono sem retorno.


JCR

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A GRANDE EDUCADORA

alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5172021099621269106" />Gosto de entrar na noite para ver melhor o escuro que me cerca.
É que eu já não entendo nada disto que corre pelos nossos dias…
Ouço uma ministra dizer que os professores titulares, mais experientes que são, não precisam de preparar aulas…
Minha senhora ministra o que é educar?
Lembro-lhe o velho Sócrates, o outro, o sábio, não o seu. Ele, sábio, dizia, “sei apenas que nada sei”.
Eu quero dizer-lhe daqui, voz muda no encosto com a Galiza que, seguindo Sócrates, o sábio, há dois tipos de ignorância: “a ignorância simples que consiste em se ter consciência do desconhecimento da natureza das coisas”. É uma ignorância muito válida mobiliza à aprendizagem, à descoberta do desconhecido... E a “ignorância dupla que consiste em não se ter consciência do desconhecimento da natureza das coisas.” Esta sim; é uma ignorância perniciosa porque dispensa a necessidade de aprender porque inibe a preocupação da descoberta. É a ignorância dos presunçosos, do sabichão, do mandador intrépido e tonto às ordens dum chefe.
A senhora ministra não é humilde e sofre da doença da ignorância dupla. Faz tudo para agradar ao chefe…
Esta é a cultura política em Portugal!
Questionar, educar para o questionamento, para o esforço, para o trabalho não dá sucesso. Não segura um ministro no seu poleiro ministerial.
É preciso ser obediente, adulador, engraxador, ou como dizem os nossos irmãos de linguagem verbal que moram no Brasil, é preciso ser puxa saco.
Então o professor faz o quê? Não tem que ser o estimulador para que o aprendente se municie de ferramentas de sobrevivência (que mal constam no seu cardápio de dezena e meia de disciplinas!!!!) E não é verdade que este trabalho de municiar para ferramentais é para durar vida fora?
Não tem o professor que incitar o aprendente a ser cidadão responsável na sua estrutura social numa dinâmica de vanguarda?
E tudo isto não precisa de preparação?
Saberá a senhora ministra, habituada que está a obedecer e a criar obediências, que, para entrarmos na diferenciação dicotómica, muito do agrado da senhora ministra, haverá só há dois tipos de educação: a educação produtora e a educação reprodutora
É por demais evidente que a senhora ministra quer reproduzir… quer professores reprodutores… A senhora Ministra tem medo do futuro. E tem razões para tanto. É que a senhora parece mais do sec. XIX ( mas cuidado com as conferências do casino…) do que deste novo milénio….
Apetece-me produzir aqui as palavras atribuídas a Cristo no momento em que executava a romana sentença da “pai perdoai-lhe porque ela não sabe o que faz”…..

SOPAPOS

A PRINCESA




Flor da semente do meu sémen,
A mais bela nos jardins que poderia imaginar,
Doida de aventuras a inventar,
Mágico trancelim
De ouro, de pérolas e marfim…
Doce e rebelde no teu atrevimento,
Serás sempre a princesa do nosso encantamento.

AVÔ PINTAROLAS

UMA ESTRELA PARA TI



Da minha varanda, colho uma estrela.
Está pregada no céu, imóvel, transparente e muito azul.
É azul e absolutamente misteriosa
E muito tão parecida com a tua lembrança luminosa
Que eu fico a adular aquele mistério da estrela que vem das bandas do sul.

Ainda quando a noite é quase manhã eu moro no desenho do teu corpo
Tão fixamente
Como quando, indiferente,
Pisavas, com passo divino, o teu caminho
Sob o meu olhar distante, secreto, de adivinho…

O teu corpo dói-me uma dor impossível…
Ainda quando eu morrer, se eu morrer, vais estar comigo
E com as melodias da pavane de Fauré…

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

A FIEL COMPANHEIRA


A poesia trata de mim, muito mais do que eu trato da poesia.
Eu nunca estou só.
A poesia também nunca está só.
Ambos moramos onde moram as palavras.
Aquelas palavras que têm cores
e formas
e sabores
Aquelas que, mesmo de noite, são mais coloridas que o arco-íris

São as nossas palavras quem desenha
As casas para onde vão morar os poemas

É por isso que olho as palavras com ternura menina.
Sobretudo, quando lhes sinto o afago às portas do sono.

ZEDOMAR

O escaninho dos silêncios


Não sei se de água
Ou de vento
Não sei se de azul
Ou de rosa
Não sei se era dia
Ou se foi noite
Sei muito somente da tua boca e dos teus olhos
E esses guardei-os
Cercados de silêncios.

A IDADE




A idade transporta um trenó carregado de lembranças
E é nas lembranças que a idade fecha os seus segredos

Os segredos
são afectos, são saudades, são pecados,
são beijos nunca dados
são esperanças
Perdidas entre os arvoredos
Duma grande floresta de esquecidos enganos

A idade é branca
Tão branca que é quase transparente
Porque a idade
pode tudo
e nunca mente

A idade é suave como o arco-íris
Duma outonal aurora
E nela se embalam,
de mãos dadas
livremente.
Os amantes proibidos de outrora

ZEDOMAR

domingo, 24 de fevereiro de 2008

LISI, NOME DE RENDA


Lisi é nome de renda.
Tão brando e breve, e muito tão suave, só uma renda transparente.
Lisi não é água; não é água, não.
A água não tem forma.
A água não se enrola.
Muito menos a água se pode enroscar numa noite, entre lençois.
A renda faz tudo o que a água não pode fazer.
Sobretudo enrosca-se.
Sobretudo entre lençois.
Sobretudo quando a solidão é branca.
Lisi é para usar de trancelim.
Lisi é para pôr no peitinho de rola.
Lisi é para fazer névoa numa praia meridional.
Praia tão meridional como aquele deserto que nasce e cresce pelas Arábias.
Lisi nunca pode ser a guitarra do Carlos Paredes. Nem sequer do Artur Paredes.
Em Lisi encontro o ar, a água, a terra.
Em Lisi falta o fogo das guitarradas dos Paredes...
zedomar

HOJE SERIA CARDEAL....


Nasci quando era uma sexta-feira. Quase noite. E porque já era quase noite minha mãe estava em casa.
Não me lembro de mamar, de chorar de usar fraldas e de ter chupeta. Lembro-me dos caracóis louros e de andar de bicicleta com o meu pai. E também me lembro de, com ele, jogar à cabra-cega e de andar à bulha. Eu ganhava sempre porque ficava sempre por cima.
O meu pai ensinava-me a escrever com lápis americanos porque o avô os mandava da América. Não sei bem se aprendi mas quando me lembro das coisas já sabia escrever.
Depois, quando tinha cinco anos, o meu pai morreu.
Sei que da minha não tenho boas lembranças. Era tão beata que queria que eu fosse padre. E batia-me porque eu gostava mais da minha vizinha do que de ser padre.

UM CAMINHAR


Tenho uma ideia madura a crescer por entre as noites
E nas noites pinto tudo o que serei.

Não pinto os trapos que já foram, as folhas dos invernos,
As decadências dos perfeitos eternos.

É verdade que nunca perdemos os passados
E é por isso que nunca me despego das memórias
Que nunca esqueço os sabores da infância
E os cheiros de então
Que quando era menino nunca houve perfumes
Mas quero é saber que terei um amanhã
Um amanhã tão simples como derradeiro
Para fazer contigo uma catedral
Talvez de pedra, talvez de vidro, talvez um simples canteiro
Mas de flores de cristal!

ZEDOMAR


Reza comigo uma oração em louvar do mar
Depois
vem comigo meditar na floresta entre o rumor das árvores.
E correr.
Correr à procura dum cantar antigo
coberto de sol e de uvas maduras.
E sob esse cantar
ficaremos sem rumo e sem leste
durante a noite
que amena faremos de perfumes e sabores.

Andava a contar uma história à Leonor.
Não sei como aconteceu, perdi a Leonor e caí aqui.
Aqui é gente mais que Leonor.
E é bom ter gente muita
para dizer as coisas que estão dentro de nós.
Todavia, tenho saudades da Leonor.
Como se fosse minha a respiração da flor;
como se fosse meu este silêncio branco;
como se eu fosse um adolescente a olhar o mar;
como se dentro do azul só houvesse uma memória;
como se eu fosse um pássaro no teu seio, Leonor...

sábado, 23 de fevereiro de 2008

A ENXURRADA


São tantos os acontecimentos a exigir considerandos, tantos os factos a merecer crónicas que ficamos com pena de não ter tempo para cronicar o futuro, a nossa (des)educação, as trapalhadas daquele ministério onde ninguém parece perceber nada de coisa nenhuma. Temos uma ministra que nunca definiu o seu conceito de educação, nem de avaliação, nem de coisa nenhuma. É um mecânico que sabe que o carro deve ter um motor, mas não sabe onde está o motor e muito menos está capaz de compreender o seu funcionamento. Valha-lhe S. Pancrácio… que é sempre um santo muito benevolente…
Mas esta semana a televisão saturou-nos de sábias e impolutas criaturas que vieram explicar a corrupção dos autarcas, as causas e os efeitos da desorganização urbana, a importância de Lisboa que terá em 2020, 45% da população do país. Preopinaram sobra soluções para as desgraças das enxurradas, a morte das jovens arrastadas pela cheia imprevista e violenta, a perda de bens, os danos materiais….
Toda aquela fila de sábios argumentava e (in)explicava o acontecido e os porquês… Até um senhor, muito composto, mostrou como a chuva foi tanta e se aproximou tão repentinamente…..
E eu, aqui nesta distância parola, e qualquer dia com as pessoas a procurar o refúgio da boa ração pelas bandas de Lisboa ( sete ex-gestores do BCP recebem 80 milhões de Euros, diz o DN de 20/02) fico sem perceber patavina das burrices daqueles cabrestos alinhados em sábios…
A democracia mede-se pelo grau de participação do cidadão. E são tanto mais democráticas, mais operativas e mais poupadas as estruturas que mais se aproximam do cidadão comum. Toda a gente fiscaliza o trabalho das juntas de freguesia que funcionam de porta aberta. Na Câmara Municipal já há mais burocratas, com várias secretárias, que outra coisa não fazem senão controlar acessos e reter o cidadão incómodo…. Do que se passa no governo central ninguém sabe nada. Melhor, sabemos todos… que rolam milhões de milhões pelos algerozes, pelas sarjetas, pelos canos de qualquer escape….
O que o governo central não faz com mil, a câmara pode não fazer com cem, mas a junta de freguesia faz com dez.
Pois…em Lisboa, cidade das sete colinas, veio tudo parar nas ribeiras cimentadas, alcatroadas, fechadas aos fluxos intraváveis da água. Antigamente construía-se no cimo das colinas…. E a água corria pelo seu leito natural…. Cortaram a natureza do seu curso… vem a enxurrada…
Pena é que não tenha ido na enxurrada a governança deste país que faz de Lisboa o umbigo do Universo…
E perfume de muita água, aqui do Alto Minho, onde a água ainda é o sangue da terra….

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

NAMORAR





Hoje é o único dia em que não quero namorar.
Perdoa, mulher minha, mas quebrei ânimos de amar
Nem eros tenho para te descompor a véstia
Nem ternura para te escrever um verso
Nem doce enleio para te cantar a melodia
Que, sem ensaio ou fantasia,
Uma cantada te posso dar em qualquer dia.

Tu sabes, mulher de qualquer circunstância,
Que não sei obedecer nem a mandos, nem a santos,
E sabes que manda em mim a sagrada natureza,
E que é sempre com cuidada elegância
Que avanço, ou paro, quando haja ou não haja encantamento
Ou quando o clima, o entorno, o manto de fofo pano,
Me agradam, me atraem, me seduzem, me levam até ao sacramento…

Eu faço a hora, o dia, o mês e o ano
Porque sou o dono do tempo.

Invento a lua ao meio dia
E escondo a Primavera dentro do Outono.

Não preciso dum dia banal
Dum santo duvidoso e mono
Para curtir, ao natural,
Amores, namoros, ternuras, ofertas e gestos

Namorar é uma arte sem palavras.
Basta, em qualquer dia, a linguagem dos afectos…

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O CRIME DA CASA PIA






Acorda-nos, no romper da manhã, um sabor de Primavera.
São as flores das magnólias, e só não é também o trono dourado de Santa Luzia porque no ano passado ardeu por inteiro.
Bombeiros e populares não tiveram defesas contra o fogo que calcinou o arvoredo. Agora está ali um estéril, despido, calvo, inútil e duro monte, onde as pedras crescem….
Bem...Deixemos os prosemas e vamos a questões mais duras e do nosso quotidiano.
Há um burburinho, uma nova balbúrdia, um alarido maior que o de sempre em torno do “apito dourado”
São crimes de corrupção a dar com um pau e tudo em torno duma fabulosa inutilidade: um balão cheio de ar que entra, ou deixa de entrar, num buraco com rede.
No meio de tudo isto o nosso poder judicial farronca e exaltera-se…. E depois arquiva porque não há substância. O senhor vereador Bexiga, de Gondomar, levou uma valente tareia. O mandante confesso foi uma senhora Carolina Salgado. Falta saber quem bateu e como arreou… pois foi tudo arquivado…
Agora são 15 os réus acusados de dezenas de crimes em torno duma bola… E o povo delira, devora jornais, opina e julga… e só não escreve a sentença porque não sabe escrever…
E se o povo opina o senhor Bastonário preopina… ( sem pôr o nome aos bois, claro!) sobre corrupção no poder… Uma senhora procuradora investiga 150 negócios de compra e venda da gente do chuto e das percentagens que fugiram ao fisco…O Director da Judiciária diz que esta tropeçou no caso da desaparecida Madelaine….
É uma festa, um entretém diário, uma pastagem para desempregados e aposentados…
Eu gostava muito que os problemas do país, e os crimes no país, fossem só estes… Que santidade!!!!
Mas estou convencido que todo este alarido, este burbulhar de feira, este estenderete de foguetório vem a lume, cresce no papel, alimenta papalvos…para esconder um crime grave e vergonhoso de que já quase ninguém fala, que existiu, que fez vítimas, que traumatizou para sempre pessoas humanas e que se chama CASA PIA…
Mas isto, para a gente graúda não tem interesse….
Vamos é organizar o mundial de futebol… de 2014…
Raio de país este que nunca mais se endireita

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

CARTA A FERNANDO PESSOA

Escrevo-te uma carta breve.
Muito tão breve que quase nem valeria a pena escrevê-la.
Escrevo-te para escriturar uma preocupação. Não pequena. Nunca nenhuma preocupação é pequena. Se fosse pequena não era preocupação.
Escrevo-te sem imaginar o teu endereço. Afinal o que te escrevo já não pode ser carta. Não há, obviamente, carta sem endereço. É um escrito e pronto. Aliás o
importante é escrever-te. Tu apanhas tudo em qualquer sítio e em qualquer língua. Tu estás sempre, antes e depois. Tu já eras e ainda serás...
Continuo apaixonado por ti, pela tua contraditória leitura das coisas: tu olhas tudo do avesso. A erva do prado verde pode ser uma ópera de Verdi, assim como um concurso televisivo pode ser o jogo da cabra cega.
Tu, Fernando, nunca podes ter um homem dentro de ti. Tens que ter dentro de ti muitos homens: uns grandes outros anõezinhos. Ou então, simplesmente, uma mulher. É nessa oximórica mulher que estou fixado. Mais do que fixado: filado nela com
indecifráveis intuitos. Intuitos ocultos, perdidos ou pérfidos. Mas não quero abrir essas janelas. Logo que se abre a caixa dos mistérios perde-se o encantamento e vai-se o fascínio. Quando o encanto voa já não mais se pode buscar, agarrar, acolher, trazer ao colo duma sedução. Mas tu é que sabes dizer bem dos desencontros, dizer duma cena burilada de linhos em flor, duma rocha encastoada de saudades. Tu é que sabes descobrir loucuras entre o centeio e o luar…
A tua sorte é andares perdido e eu não te encontrar. E toma cautelas porque não estarei só nesta procura obsessiva. Conhecerás tu uma Rita na tua peugada? Não a Ferro, a Rita Ferro, já demasiado descoberta. É uma outra. Mais pequenina. A Maria
Rita. Toma cuidado Fernando, Eu sei que tu és um aselha com mulheres. Essas cartas que escreves à Raquel Queirós não se mostram a ninguém. Tu não tens juízo. Não se exibem as partes íntimas. Essas cartas são partes muito íntimas de nós.
Mas eu gosto das pessoas sem juízo. Muito juízo tinha a minha mãe e era uma vespa. Já a mãe do Almodovar era uma mãe sem juízo com um encanto que chegava ao outro mundo. Tu, porém, além de não teres nenhum juízo és Pessoa. Estás, por isso mesmo, duplamente exposto. Julgo mesmo que a decifração dos heterónimos tu sempre a iludiste. Particularmente quando os quiseste explicar àquele maricas do Montalvor. Andas para aí a espalhar heterónimos com forma de fugir às responsabilidades. E é por causa dessa dispersão que nem eu, nem a Rita, nem a Kelly, nem o Rui, o Armindo ou Quim sabemos de ti.
Olha, Fernando, escreve para O Grande Zoo ou para Surucucu e combinamos um encontro. Aposto que ninguém se importará de ir beber uns bagaços contigo a qualquer lado. Nem mesmo o Quim que só gosta de pequenas paródias. E tem que ser a qualquer banda. Ou a
uma banda qualquer.
Porque o Martinho já não existe.
Aquele abraço.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

A Minha Lingua Portuguesa


Uma língua é, em si mesma, um conjunto complexo de cargas acústicas e icónicas, mas também fisiológicas, neurológicas, psicológicas, sociológicas, e até matemáticas.
Uma língua é, numa perspectiva pragmática, antes de mais nada, um utensílio comunicacional ao serviço de uma ou de várias comunidades. Desde as comunidades pré-históricas que a linguagem é uma substância, uma força material: assim como uma zagaia, um cutelo, uma charrua.
Não há estudo antropológico sem estudo da linguagem, e o desenho idiossincrático dum povo tem sempre a ver com a capacidade comunicacional da língua que esse povo utiliza.
O nosso cérebro é um corpo de recursividades organizado e programado segundo lógicas analíticas fornecidas pela língua que utilizamos. Quem diz homem diz língua. E quem diz língua diz comunidade e diz sociedade. Nós somos a língua. E nunca estaremos completamente à vontade na nossa actividade profissional se formos violentados à utilização duma língua que não fez os nossos esquemas mentais.
E se é certo ser a nossa língua a que melhor serve a nossa própria actividade profissional, também é certo que a língua tem fraco, ou nenhum préstimo, se não estiver ao serviço duma actividade profissional.
O Homem aprende a organizar a realidade física e mental a partir da sua língua. A organização do mundo não depende do mundo, mas da língua.
Uma língua é, depois, uma imagem de marca, uma bitola de gradações, um traço da personalidade, uma componente integradora. Será o elemento maior de legitimação de pertença, e da qualidade da pertença a uma comunidade.
O discurso é a marca maior da personalidade. A palavra pode ser uma jóia. Pode dar ou tirar prestígio.
A língua é como um raio X: :mostra tudo à transparência.
É por isso que a incorrecção de linguagem não é só um atentado contra a língua é um atentado contra a alma, como dizia Platão.






A Língua Portuguesa, porque língua viva e em situação operacional, constitui um património.
Património é um bem cujo valor pode ser avaliado segundo critérios vários.
É possível estabelecer para os bens o titular da posse e o titular da propriedade. Os titulares de posse e propriedade têm direitos sobre os bens, mas cabem-lhes, também, responsabilidades de gestão e de conservação desses bens.
A língua Portuguesa é um bem complexo e vivo ; e aprimoravel ; e adulteravel.
Os gramáticos e os linguistas têm direitos face à língua: Cabe-lhes compreender, para explicar, as suas dificuldades e as suas complexidades ; mas não são donos da língua.
A língua portuguesa pertence a quem trabalha com ela. Pertence a quem dela faz utensílio quotidiano. A quem com ela pensa, desenvolve, inventa e nomeia. E nomear é criar. É por isso que os logotetas, os criadores de linguagem são os empresários, as gentes de negócios, os activos de todas as indústrias. E assim a língua é instrumento nosso enquanto cada um vai sendo instrumentalizado pela própria lingua. E não importa que isso aconteça em Portugal, no Brasil, ou na China.
Os linguistas vêm depois para explicar. Não fazem o fardo: trabalham com as alavancas para movimentar o fardo. E para que este trabalho seja correcto é sempre preciso que a alavanca não seja mais pesada que o fardo.
Mas então a quem compete fazer a gestão, conservação e implementação da Língua Portuguesa ?
A todos os que dela sabem fazer a conveniente utilização. A utilização faz-se em situação e segundo as conveniências da função. Sendo certo que as funções só são convenientes se forem sucessivas, complementares e harmónicas. E úteis. Sobretudo úteis para que possam produzir outras eficácias além de veicular o discurso do sistema que não é, seguramente, um produtor de eficácias.
Este triplo esforço não é, nem pode ser, monopólio de ninguém. A língua tem que contorcer-se, deformar-se, alterar-se, prostituir-se, engravidar, parir, para se transformar e crescer. Para durar. Para não morrer escanzelada como uma virgem casta. Para servir o ritmo das virtudes da vida e do pecado da vida.
Nenhuma língua cresce, ou sequer resiste, num espaço asséptico.
A Língua Portuguesa tem que ser assumida, trabalhada e tratada como componente e enquanto componente de todas as actividades que fazem parte da vida das pessoas.
O pior serviço que se pode prestar à língua é querer assumi-la como segmento cultural, exclusivamente como segmento cultural, desligando-a, ou desobrigando-a do trabalho nas oficinas, nas tendas, nos restaurantes, nos cinemas, nos contratos, nos negócios, nas cantigas, nas viagens, nas práticas banais e nos encontros de circunstância. A língua tem que descer à rua, ir ao mercado, tem que comprar e vender produtos, tem que fazer o comércio das coisas. A língua é para vestir e calçar, para ir à dança e ficar no bar, para beber e discutir, para dizer amores, para ter um corpo inteiro com pernas e braços, e tronco, e cabeça.
A língua tem que largar penachos e limpar vernizes, tem que fugir do bafio triste dos prantos académicos, tem que evitar a doença do historicismo, tem que perder erudição para ser vida e poesia.
Deixe-se a língua ter sabor, o sabor confuso e frenético da vida. Compreenda-se que a gramática é um instrumento e não uma lei, como queria Pessoa. Não se sature a língua com mais citações, e mais cópias daqui e dali para armar ao cultural. Não se asfixie a língua com cautelas de significantes, com moralismos puristas, com controles sintácticos. A língua deve ser transigente e transgressiva: para ser ágil ; e sobretudo para ser jovem: se quiser ser bonita.

CONTRA O SILÊNCIO



O silêncio é a muleta da ditadura.
Sempre foi com o silêncio que se sustentou a tirania, que se alimentou a intolerância, que nutriram os fundamentalismos.
Em nome do silêncio, da conveniência do silêncio, das vantagens estratégicas do silêncio, cresceram todos os horrorosos personagens da história.
E foi sempre para assegurar o silêncio que se criaram polícias muito específicas: a Pide, a Gestapo, o KGB.
O silêncio é mais que uma rolha.
O silêncio é a jaula de todas as linguagens
O silêncio é uma praga.
O silêncio corrompe.
Quando o silêncio se instala tudo chafurda no mesmo lodo, tudo…
Prefiro o alarido: O alarido tem sabor a festa
O silêncio é a morte!

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

PELA DERROTA DO APARELHISMO


O aparelhismo não é uma ideologia . É o inimigo da ideologia .
O aparelhismo não é uma ideia . É uma prática idiota.
O aparelhismo não é um princípio . É um esquema operacional . Não chega, sequer, a ser uma estratégia porque não conhece lógicas nem sabe establecer relações de causalidade.
O aparelhismo não faz análises. Faz contas.
O aparelhismo só não é repressivo porque não precisa da repressão para ser eficaz.
O aparelhismo gosta de registar nomes, de elaborar listas, de montar arquivos, de guardar papeis. Conhece muita gente mas tem a mania que conhece muita mais. E é íntimo. E tanto promete favores porque é íntimo, como faz ameaças porque é íntimo.
O aparelhismo não distingue fidelidade de lealdade. Nem consensos de concórdia. Prefere confundi-los porque é nesta confusão que ele bem se entende.
O aparelhismo conhece muito bem as leis mas resolve tudo na tramóia. Gosta pouco de ter opiniões mas faz muitos negócios. E porque não tem escrúpulos até garante tudo. E também porque não tem escrúpulos falta com tudo que garante.
Livre pensador é que o aparelhista não é. Aliás nem precisa de pensar: já pensou tudo. É um maquinador e precisa é de agir. Permanentemente.
O aparelhista nunca reconhece a autoridade da evidência e tudo faz para substituir a autoridade da evidência pela evidência da autoridade. Parece muito que acredita naquilo que o move, mas é hipócrita e muito velhaco. E tal como a ocasião faz o ladrão, também a ocasião faz o aparelhista.
O aparelhismo é muito discreto, actua na sombra, disfarça-se, toma outros nomes, veste formas muito respeitáveis e dignas. O aparelhismo nos partidos até se chama organização...
E é sempre nos partidos políticos que o aparelhismo é mais fértil. Tão fértil que há partidos que substituíram a ideologia e o trabalho sobre projectos sociais aplicáveis pelas práticas do aparelhismo.
O aparelhismo vive dos funcionários. Embora tenham o nome de funcionários estes senhores não têm funções: têm tarefas. A função é uma produção livre, autónoma e responsável, enquanto a tarefa é uma execução episódica e sob comando. Além de tarefeiro, esta espécie de funcionários realiza perfeitamente o modelo do zelador: atento, bajulador e diligente a sustentar a evidência da autoridade. É por isso que o aparelhismo precisa de ter as pedras certas no sítio certo. Porque o aparelhismo não lida com pessoas; lida com pedras.
No aparelhismo não há acções planificadas na perspectiva da inovação. Todavia, para que se mantenha um firme controlo de situações a fim de evitar práticas desviantes e transgressivas, tudo deve estar rigorosamente programado e previsto.



O aparelhismo gosta de provar que é justo, o que é absolutamente falso. Porém, para iludir a questão da justiça faz-se muito generoso. Generoso e sedutor. Sobretudo para os adversários a quem sempre tenta conquistar. Quem diz conquistar não diz convencer, que a aparelhismo não aprecia convicções. Prefere as crenças, os actos de fé ou a simples devoção. À devoção chama, publicamente, dedicação. O que, sendo falso, é também uma ofensa Que a dedicação é um sentimento muito meritório quase sempre sumiticamente compensado com louvores e condecorações. E ainda por cima tardias. Algumas muito tão tardias que chegam a ser póstumas.
Mas a generosidade do aparelhismo não é teórica, nem de estimaçã. É muito objectiva e prática. E quase sempre bem substancial. Mete tranches, e fatias, e tráfego de influências, e lugares, e ainda candidaturas. Nunca refere expressamente os subornos, mas eles estão quase sempre subjacentes. Também não regista o nepotismo, os compadrios, o encobrimento, os conluios, os apoios mas é tudo isto que movimenta grande parte da gente que gravita nos partidos que, como todos sabemos, são o grande berço do aparelhismo. E por lá se constituem sindicatos de voto, e “lobbys", e se contam espingardas, e se faz o poder em nacos para que cada um tenha a sua ração bem à medida do seu intrépido merecimento.
As candidaturas e os lugares de estado aparecem hoje como a emergência mais em voga do aparelhismo. São ofertas a que os trânsfugas cedem com relativa facilidade. E porque os aparelhistas não podem confiar nas ideias que não têm, ficam eufóricos de contentamento, e muito seguros da sua grandeza, por ver incorporadas na sua comandita as sumptuosas criaturas que acabam de negar a sua filiação.
Zedomar

A NOSSA NATUREZA


Somos um país essencialmente agrícola: uns já cavaram, outros vão cavar e os que ficam são nabos!"

VENHA EMPREGO OU HAJA TACHO


Num jornal vem um pedido de emprego que diz assim:
“Licenciado, mestre e dourorando em História e História de Arte, com artigos e livros publicados, procura emprego compatível com habilitações. Se ajudar, está disposto (embora contrariado) a filiar-se no Partido Socialista ou outro. Aceita mudar de nacionalidade”
O mal não está no desgraçado que só sabe de história. O mal é que os governos abdicaram e perderam o poder regulador. É roda livre…
Criaram-se Universidades a esmo: A maior parte para fazer cursos de fotocópia. Outras fazem engenharias de pacotilha…
E para os jovens, como para os pais, o que parece importante é entrar: nem que seja num beco sem saída. Depois as praxes são o encanto do ensino superior…
O meu patrício Eça de Queirós, aqui, nesta Viana concebido em pecado, num vão de escada, escrevia em 1867 num Jornal Alentejano. “ Ordinariamente todos os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém são nulos a resolver crises”. “ É política de acaso, política de compadrio, política de expedientes. O país é governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulações e corrupção, por privilégios e influências de camarilha…”
Em minha opinião Eça não tem razão: e não tem razão porque hoje os ministros não escrevem bem, nem discursam com cortesia e pura dicção.
Mas Guerra Junqueiro, que por aqui morou como anónimo servente do Governo Civil nos idos de 90 do sc. XIX, também nos definia muito bem:” uma burguesia cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que descambam na vida pública em pantomineiros, capazes de toda a infâmia, da mentira, da falsificação.
Donde provem que na política portuguesa se sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos….
O poder legislativo é o esfregão de cozinha do executivo…
A justiça anda ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas…
Dois partidos, sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero e não se fundindo por não caberem todos, duma vez, na mesma sala de jantar….”
Os textos reproduzidos agravam ainda mais o cenário, tal como se continua a agravar o desemprego…
Razão talvez tenha o governo brasileiro, que lançou um curso de formação para trabalhadores do sexo… e muito bem estruturado. Como se pode ver na net.( http://www.mtecbo.gov.br/busca/competencias.asp?codigo=5198 )
O que não espanta nada…
Então neste arremedo de país, muito europeu, não se dá equivalência ao 9º ano a quem faça, pelo IEFP, um curso… de futebol?????!!!!!!!!!

domingo, 3 de fevereiro de 2008

ENTRAR NO DOURO


Entro neste Douro fundo e profundo e perco o meu pensar

Pensar é ler uma cartilha lógica
É usar um nónio português
É manipular um ábaco chinês
É sucumbir ante uma evidência estética
É não ajoelhar perante a divindade mitológica
Venha ela de Maomé, do Vaticano,
De Buda, dum animismo africano…

Mas aqui não há medidas,
Nem há razões decididas,
Nem geométricas funções,
E nenhum modelo exclusivo…
Aqui é tudo incrível
Tudo impensável, tudo afectivo,
Tudo do tamanho do impossível…

Nós, humanos, carregados de mágoa,
Não percebemos nada disto.
Quem sabe das fragas abertas pela água
São os pássaros, o arbusto do xisto,
As libelinhas, o bufo nocturno, o pequeno insecto.
Este alcantilado, para os humanos,
Parece um deserto,
Uma ilusão
O cabo do mundo da civilização.

Aqui, dum lado ao outro, há uma hora de permeio
Há um país cortado ao meio
Há uma birra entre Madrid e Lisboa
Traçada na proa
Dum barco onde se fala portunhol
Porque no meio do Douro
Não há português nem espanhol.

Na raiz deste silêncio peninsular
Há uma eternidade por achar…
JCR

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A PALAVRA


Todas as palavras são atrevidas quando são palavras.
E são atrevidas porque são eminentemente humanas.
Só o humano sabe da palavra, procura a palavra, descobre a palavra, ama ou odeia com palavras e sente que a palavra quer entrar mesmo sem prévio aviso.
As palavras somos nós:
Há palavras redondas e inertes, palavras definitivas.E porque definitivas são inúteis.
Há palavras acabadas sob um gesto e palavras sem gesto.
Há palavras que dizem tudo sem dizer coisa nenhuma.
Há palavras extremas e grandes palavras pequenas.
Há palavras repetidas que nunca são exactas: nem sequer sentidas.
Há palavras atadas à conveniente circunstância.
Há palavras doces e palavras azedas.
Há palavras verdade exactamente iguais às palavras mentira
Há palavras perdidas e outras prisioneiras. Também há palavras fora de tudo quando tudo está fora das palavras.
Há palavras abertas como água e palavras fechadas como rancor.
Há palavras que voam ditas e outras palavras que moram escritas.
Há palavras lume e palavras afogadas, mortas, em decomposição.
Há palavras rebeldes, outras bem comportadas e muitas de simulada cerimónia. São as palavras do quando…Porque há palavras tempo e palavras momento, muito diferentes fora e dentro.
Há palavras virgem, vertigem ou esperança e sempre à espera da estrela matinal.
Há palavras gume, palavras de ciúme, palavras mansas ou de pecado original.
Há palavras perfume em feitio de flor…
Há palavras absolutas, infinitas, tão infinitas como a cor do amor.
Mas sempre há sentimentos que nos moram por dentro e não cabem nas palavras.

ACEDER AO TEXTO

ACEDER AO TEXTO


Perante um qualquer texto, seja ele de natureza poética, pictórica ou melódica, pode o leitor-observador ter atitudes muito diferentes e todas elas de reconhecido mérito, sempre exigentes, mas de complexidade variável.
Olhar um texto, entrar dentro dum texto, compreender um texto, fruir um texto pode fazer-se por portas e janelas de natureza diversa…
Um texto é sempre um tecido. E há uma única condição prévia que se exige ao leitor-observador: uma atitude hedonística, uma busca obsessiva de prazeres.

Sejamos explícitos:

1- Resumo-Expansão- O Resumo ou a Expansão têm a mesma natureza na sua essência mas, porque contrários os objectivos, apresentem resultados opostos.
Haverá sempre obrigatoriedade de decompor o texto em partes, mostrar como elas se articulam, qual a sua lógica sequencial e formal e partir depois para um desempenho de condensação ou de expansão. Fazemos notar que sempre se respeita a estrutura, a ordem, a lógica, e a substância textual.
Nem o resumo, nem a expansão se podem desviar dos conteúdos prévios insertos no texto do autor.
Este não é um exercício menor, mas é um tratamento iniciático à plenitude do acesso textual…

2- O Comentário - O comentário é libertário. Deixa que se olhe o texto segundo critérios indefiníveis e não reguláveis. Comenta-se o texto palpitando sobre gostos ou técnicas, sobre teorias ou sabores, sobre afectos ou aversões.
O comentário não tem vinculação teórica, é uma viagem ao sabor do deleite que pode ter passeios de indiferença ou acidentes de aversão.
O comentário não precisa de distinguir forma e conteúdo. É diletante.
O comentário pode viajar pelo texto no tempo da maré, como na majestade do mar encapelado. Comentar é o trato que se dá ao texto, muitas vezes com o nome de análise. Tal não é correcto porque não é verdade. O comentário é nocional, é emocional, é ideológico. A análise é técnica é rigorosa é científica,

3- A Análise – A análise dum texto é sempre conceptual; é por isso que ela é técnica, rigorosa e científica.
Não pode haver análise textual sem a prévia selecção do analisador.
Analisar um texto, particularmente um texto poético, nunca é uma prática absoluta e definitiva; é sempre inesgotável porque sempre depende do analisador a que sujeitamos o texto na leitura que dele possamos fazer.

Imaginemos quantas análises já fora feitas do soneto de Camões “ Alma minha gentil que te partiste”… ou mesmo do “ Manifesto Anti-Dantas” ou da Cena do ódio de Almada Negeiros, ou “ Cântico Negro” de José Régio, ou nas infinitas leituras de Bocage que sempre chegou aos analfabetos mais recuados. Pior, ou melhor será pensar na complexidade heteronímica da obra de Pessoa, onde tudo é “ pensado com o sentimento”...(ou será que tudo é “sentido com o pensamento”?).
O texto poético é tão enorme como o universo porque ele só pára depois do fim dos tempos.
Falando de texto, falamos de teia. E quem diz teia deve pressupor que da teia se faz tecido. Um texto em linguagem verbal pode ser analisado segundo várias coordenadas, Qualquer texto pode ser analisado do ponto de vista fonético, morfológico, sintáctico e semântico. Podem depois combinar-se e cruzar-se todas e quaisquer destas componentes para constituírem factor de análise.
Esta hipóteses de cruzamento de combinatórias analíticas conduzem-nos a uma multiplicidade de resultados imprevisíveis porque sempre intervêm na abordagem textual valores subjectivos que não são quantificáveis nem diferenciáveis…
Não podemos esquecer que o texto é, em si mesmo, um produtor autónomo de significâncias cuja dimensão, natureza e entorno é sempre variável de sujeito-leitor a sujeito-leitor. E, no mesmo sujeito-leitor, varia nas diversas circunstâncias, porque cada circunstância é sustentada por analogias, afinidades, discrepâncias, afectos , amores e ódios: e tudo interfere em tudo…
3.1 - O texto de explicitude é o texto mínimo, sumário na informação, esquelético na forma e sem adereços. É uma informação de rigor, precisa, unidireccional, informativa, não dialogística.
Mesmo o texto jurídico, que se quer unívoco, é fonte, ou causa, de inúmeros conflitos interpretativos.
Caso limite de texto que deve ser unívoco, para que se cumpra, com todo o rigor a vontade do de cujus, é o testamento. Pois mesmo neste caso temos os tribunais, com magistrados e advogados, a buscar cada um o entendimento da sua conveniência. E isto no acesso a um texto que, pela natural operacionalidade, deve ser de óbvia univocidade… Mesmo este texto se deixa penetrar de interpretações…
3.2 – O texto poético
A poesia é um estado mental.
A poesia faz-se poema tomando substâncias.
As substâncias com que se faz a forma do poema são três. E assim, conforme as substâncias, o poema se conforma, se transforma se abre ou se descobre…
Que o poema tem um corpo. Um corpo material, urdido e tecido na imprevista forma, composto nos fios da teia verbal que gera infinitudes de leituras racionais ou de inefáveis prazeres.
Sempre os sentidos se perturbam na aproximação ao texto poético. O leitor entra, procura entendimentos e, ora se arrepia de confusões, ora se deleita no devaneio inconsistente e inefável.
Nunca nos definimos de comportamentos perante o poema. O poema inebria, e enquanto inebria tanto provoca o desatinado chora como nos transporta para a irrealidade incontrolável dum cosmos que só pode desaguar numa madrugada de muitas primaveras.
Mas voltemos ao corpo do poema, porque é sempre no corpo que encontramos a expressão sensual. Entremos no corpo do poema como num templo. Deixemos também que o poema entre para dentro de nós. Ao contrário dos costumes....
O corpo do poema atrai, encanta, seduz…por ser melopeia porque é feito de músicas, de sonoridades, de ritmos, de batucagens que traçam o corpo vivo do poema. Então, o poema embala e entretém.
É o poema bom de dizer e o melhor para cantar.
O significante do poema é uma litania, um marulhar silábico, um cantarolar fonético…
Agora o corpo é já um jogo fánico, uma mescla holística de linguagens (des)organizada por símbolos que presidem ao excurso alegorético e donde fugiu todo o entendimento prosaico e literal. Nesta fanopeia estamos como na rosa dos ventos donde se abrem todos os nortes mas onde se perde o seguro dos sentidos.
Tudo é diverso e ocasional.
Tudo é circunstância e oportunidade.
É aqui que o poema produz e oferece todas as polessemias. É agora que o poema toca a definitiva e intangível intemporalidade.
Mas o poema veste-se de palavras. E as palavras têm marcas familiares, origens e estirpes, maternidades ou paternidades, famílias bem compostas ou analogias de muitas circunstâncias.
Há palavras elegantes e certeiras que viajaram de iate até ao destino e outras, muitas, palavras marinheiras e travessas, colhidas na acostagem dum porto ocasional perdido nos mistérios de todas as Áfricas…
Todavia, todas as palavras carregam sentidos prévios, e nas muitas significâncias nos enredamos, e nesta logopeia nos encobrimos e nos descobrimos no corpo do poema.

Mas procuremos os poemas. Procuraremos os poemas!
Por mim, quero ficar refém do poema…
JCR

ENTRE O DOURO


Desço a paisagem do Tua entre lembranças e pintassilgos enamorados. Ainda há flores: exóticas flores e sempre abundantes; mas nada de uniforme e banal, nada de regular e geométrico.
A Natureza é o acidente. Vai do penhasco de arrepio onde salta o regato branco até à cova tenebrosa onde repousam mistérios.
Desço muito lentamente para que as imagens possam descansar. Desço lentamente para suster a vertigem que me assalta quando a ravina está tão próxima.
Muito eu gostava de ter tempo, e ter idade, para, por ali, andar aos ninhos, aos grilos, às joaninhas. E ali colher amoras. Então, seria livre até à minha natureza e nem precisaria de meditar, sentado no seguro penedo, à procura dos destinos.
Gosto de me sentir só no meio dos silêncios. É nesses momentos que fico infinitamente perto de tudo.
O abandono prende-me aos prazeres. Prazeres que invento como se o musgo, o tremoço azul, a primavera jovem fossem um pálio solene.
O abandono é nu. Nu de nascença e espontâneo. Tão espontâneo e tão esteticamente belo como aquele burro estático numa ideia fixa.
É. Acho que caí no devaneio. E agora medito. Em êxtase. Seguro e senhor de todas as certezas.
Pasmei.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Os meus dias


Gosto de cultivar as memórias num campo azul
Mas num azul menos inquieto que o mar
E menos profundo que o azul dum Maio florido.


Escrevo uma memória que ainda só germina
Muito suavemente, ao som duma ocarina,
Envolta e debruada num mágico tecido
Que, se eu não fora ateu, dava um altar.
Mas o que é bom e salutar
É nunca sabermos nada de destinos...

Porque não é pelos destinos que abrimos as memórias.
O que sabemos e sofremos são fúrias de surpresas
São fascínios sem rumo e sem histórias
São encantos, são um pico de estranhezas...

Depois, é um devaneio, um canto e uma espera
Até que chegue a Primavera
Ou uma estrela cadente me dê ao sol
A cor azul