segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

CARTA A FERNANDO PESSOA

Escrevo-te uma carta breve.
Muito tão breve que quase nem valeria a pena escrevê-la.
Escrevo-te para escriturar uma preocupação. Não pequena. Nunca nenhuma preocupação é pequena. Se fosse pequena não era preocupação.
Escrevo-te sem imaginar o teu endereço. Afinal o que te escrevo já não pode ser carta. Não há, obviamente, carta sem endereço. É um escrito e pronto. Aliás o
importante é escrever-te. Tu apanhas tudo em qualquer sítio e em qualquer língua. Tu estás sempre, antes e depois. Tu já eras e ainda serás...
Continuo apaixonado por ti, pela tua contraditória leitura das coisas: tu olhas tudo do avesso. A erva do prado verde pode ser uma ópera de Verdi, assim como um concurso televisivo pode ser o jogo da cabra cega.
Tu, Fernando, nunca podes ter um homem dentro de ti. Tens que ter dentro de ti muitos homens: uns grandes outros anõezinhos. Ou então, simplesmente, uma mulher. É nessa oximórica mulher que estou fixado. Mais do que fixado: filado nela com
indecifráveis intuitos. Intuitos ocultos, perdidos ou pérfidos. Mas não quero abrir essas janelas. Logo que se abre a caixa dos mistérios perde-se o encantamento e vai-se o fascínio. Quando o encanto voa já não mais se pode buscar, agarrar, acolher, trazer ao colo duma sedução. Mas tu é que sabes dizer bem dos desencontros, dizer duma cena burilada de linhos em flor, duma rocha encastoada de saudades. Tu é que sabes descobrir loucuras entre o centeio e o luar…
A tua sorte é andares perdido e eu não te encontrar. E toma cautelas porque não estarei só nesta procura obsessiva. Conhecerás tu uma Rita na tua peugada? Não a Ferro, a Rita Ferro, já demasiado descoberta. É uma outra. Mais pequenina. A Maria
Rita. Toma cuidado Fernando, Eu sei que tu és um aselha com mulheres. Essas cartas que escreves à Raquel Queirós não se mostram a ninguém. Tu não tens juízo. Não se exibem as partes íntimas. Essas cartas são partes muito íntimas de nós.
Mas eu gosto das pessoas sem juízo. Muito juízo tinha a minha mãe e era uma vespa. Já a mãe do Almodovar era uma mãe sem juízo com um encanto que chegava ao outro mundo. Tu, porém, além de não teres nenhum juízo és Pessoa. Estás, por isso mesmo, duplamente exposto. Julgo mesmo que a decifração dos heterónimos tu sempre a iludiste. Particularmente quando os quiseste explicar àquele maricas do Montalvor. Andas para aí a espalhar heterónimos com forma de fugir às responsabilidades. E é por causa dessa dispersão que nem eu, nem a Rita, nem a Kelly, nem o Rui, o Armindo ou Quim sabemos de ti.
Olha, Fernando, escreve para O Grande Zoo ou para Surucucu e combinamos um encontro. Aposto que ninguém se importará de ir beber uns bagaços contigo a qualquer lado. Nem mesmo o Quim que só gosta de pequenas paródias. E tem que ser a qualquer banda. Ou a
uma banda qualquer.
Porque o Martinho já não existe.
Aquele abraço.

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