domingo, 10 de fevereiro de 2008

A Minha Lingua Portuguesa


Uma língua é, em si mesma, um conjunto complexo de cargas acústicas e icónicas, mas também fisiológicas, neurológicas, psicológicas, sociológicas, e até matemáticas.
Uma língua é, numa perspectiva pragmática, antes de mais nada, um utensílio comunicacional ao serviço de uma ou de várias comunidades. Desde as comunidades pré-históricas que a linguagem é uma substância, uma força material: assim como uma zagaia, um cutelo, uma charrua.
Não há estudo antropológico sem estudo da linguagem, e o desenho idiossincrático dum povo tem sempre a ver com a capacidade comunicacional da língua que esse povo utiliza.
O nosso cérebro é um corpo de recursividades organizado e programado segundo lógicas analíticas fornecidas pela língua que utilizamos. Quem diz homem diz língua. E quem diz língua diz comunidade e diz sociedade. Nós somos a língua. E nunca estaremos completamente à vontade na nossa actividade profissional se formos violentados à utilização duma língua que não fez os nossos esquemas mentais.
E se é certo ser a nossa língua a que melhor serve a nossa própria actividade profissional, também é certo que a língua tem fraco, ou nenhum préstimo, se não estiver ao serviço duma actividade profissional.
O Homem aprende a organizar a realidade física e mental a partir da sua língua. A organização do mundo não depende do mundo, mas da língua.
Uma língua é, depois, uma imagem de marca, uma bitola de gradações, um traço da personalidade, uma componente integradora. Será o elemento maior de legitimação de pertença, e da qualidade da pertença a uma comunidade.
O discurso é a marca maior da personalidade. A palavra pode ser uma jóia. Pode dar ou tirar prestígio.
A língua é como um raio X: :mostra tudo à transparência.
É por isso que a incorrecção de linguagem não é só um atentado contra a língua é um atentado contra a alma, como dizia Platão.






A Língua Portuguesa, porque língua viva e em situação operacional, constitui um património.
Património é um bem cujo valor pode ser avaliado segundo critérios vários.
É possível estabelecer para os bens o titular da posse e o titular da propriedade. Os titulares de posse e propriedade têm direitos sobre os bens, mas cabem-lhes, também, responsabilidades de gestão e de conservação desses bens.
A língua Portuguesa é um bem complexo e vivo ; e aprimoravel ; e adulteravel.
Os gramáticos e os linguistas têm direitos face à língua: Cabe-lhes compreender, para explicar, as suas dificuldades e as suas complexidades ; mas não são donos da língua.
A língua portuguesa pertence a quem trabalha com ela. Pertence a quem dela faz utensílio quotidiano. A quem com ela pensa, desenvolve, inventa e nomeia. E nomear é criar. É por isso que os logotetas, os criadores de linguagem são os empresários, as gentes de negócios, os activos de todas as indústrias. E assim a língua é instrumento nosso enquanto cada um vai sendo instrumentalizado pela própria lingua. E não importa que isso aconteça em Portugal, no Brasil, ou na China.
Os linguistas vêm depois para explicar. Não fazem o fardo: trabalham com as alavancas para movimentar o fardo. E para que este trabalho seja correcto é sempre preciso que a alavanca não seja mais pesada que o fardo.
Mas então a quem compete fazer a gestão, conservação e implementação da Língua Portuguesa ?
A todos os que dela sabem fazer a conveniente utilização. A utilização faz-se em situação e segundo as conveniências da função. Sendo certo que as funções só são convenientes se forem sucessivas, complementares e harmónicas. E úteis. Sobretudo úteis para que possam produzir outras eficácias além de veicular o discurso do sistema que não é, seguramente, um produtor de eficácias.
Este triplo esforço não é, nem pode ser, monopólio de ninguém. A língua tem que contorcer-se, deformar-se, alterar-se, prostituir-se, engravidar, parir, para se transformar e crescer. Para durar. Para não morrer escanzelada como uma virgem casta. Para servir o ritmo das virtudes da vida e do pecado da vida.
Nenhuma língua cresce, ou sequer resiste, num espaço asséptico.
A Língua Portuguesa tem que ser assumida, trabalhada e tratada como componente e enquanto componente de todas as actividades que fazem parte da vida das pessoas.
O pior serviço que se pode prestar à língua é querer assumi-la como segmento cultural, exclusivamente como segmento cultural, desligando-a, ou desobrigando-a do trabalho nas oficinas, nas tendas, nos restaurantes, nos cinemas, nos contratos, nos negócios, nas cantigas, nas viagens, nas práticas banais e nos encontros de circunstância. A língua tem que descer à rua, ir ao mercado, tem que comprar e vender produtos, tem que fazer o comércio das coisas. A língua é para vestir e calçar, para ir à dança e ficar no bar, para beber e discutir, para dizer amores, para ter um corpo inteiro com pernas e braços, e tronco, e cabeça.
A língua tem que largar penachos e limpar vernizes, tem que fugir do bafio triste dos prantos académicos, tem que evitar a doença do historicismo, tem que perder erudição para ser vida e poesia.
Deixe-se a língua ter sabor, o sabor confuso e frenético da vida. Compreenda-se que a gramática é um instrumento e não uma lei, como queria Pessoa. Não se sature a língua com mais citações, e mais cópias daqui e dali para armar ao cultural. Não se asfixie a língua com cautelas de significantes, com moralismos puristas, com controles sintácticos. A língua deve ser transigente e transgressiva: para ser ágil ; e sobretudo para ser jovem: se quiser ser bonita.

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