quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
EUGÉNIO DE ANDRADE
Deixas as palavras muito tristes
Muito tão tristes como se perdessem um padrinho
Que em cada manhã as acordava de mansinho
Porque tu dormias com elas ao colo
E com elas tecias cálices e corolas
E desenhavas canteiros
Para as flores de todos os jardins.
E sobre a copa das florestas
Vazavas perfume temperado de harmonias
Enquanto pelas ruas desenhadas em franja
Um movimento, um alarido, uma festa colorida
De rosas, de verde, de laranja e melodias.
Tudo era sempre a força e o feitio das palavras nascidas
Da fúria maternal, suave, de geleia
E tudo calmo e transparentes como lua cheia.
Os engenhos rudes e mecânicos
Atiraste sempre para a outra margem
E para eles olhavas como quem olha
Para a horda bárbara e tirânica
Incapaz de perceber
Ou de saborear
A aragem das palavras a desabrochar
Escolheste um dia de Junho
Um dia suave e morno
Um dia vestido de azul do mar ao firmamento
Para adormecer mais suavemente
Um sono sem retorno.
JCR
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