Contornar o aparente, ultrapassar as evidências e subir até à decifração primorosa é obra: impõe cautelas, exige competências, obriga a distanciamentos e à busca da lucidez tranquila. É obra da História, é a missão do historiador.

Em Portugal tem-se medo da História. Não se faz História a quente. Todos conhecem, de cor, as teorias da História desde Tito Lívio e Fernão Lopes até Marx, Spengler e Toynbee . As teorias, as leis e as artes de fazer História. Mas a História ao vivo, tocando nas fontes e ouvindo os sujeitos activos e passivos, espiolhando os factos e esmiuçando os dados, confrontando testemunhos e réplicas, e depois ratificando tudo




Não custa, antes é saboroso porque, quase sempre, laudatório, fazer análises sobre os consequentes do 25 de Abril. São coisas que passam pela nossa pele, que deram absoluta tranquilidade ao nosso espírito e à nossa condição de livres pensadores.

Vale sempre a pena não esquecer que havia medo de pensar, e temores, e pesadelos que perturbavam o sono e proibiam o sonho. Ainda que não restasse mais nada, estas são razões que bondam para tecer epopeias ao 25 de Abril .
Da génese do 25 de Abril não há fartura de documentos dados à estampa. Documentos que esclareçam sobre a natureza do movimento que se converteu na acção militar que depôs o regime.


A farta literatura de análise social, obra de sociólogos, orienta-se para as consequências sociais da implantação da democracia ,porque é esse o seu escopo preferencial .
Julgamos que José Freire Antunes tem preparados trabalhos que farão luz sobre o passado do 25 de Abril e que desses trabalhos poderão resultar esclarecidos os papeis de forças políticas e de personalidades civis e militares muito protagonistas na colheita de louros, mas de posicionamentos dúbios ou inconsistentes na fase anterior à noite da libertação .

OS 25 DE ABRIL
GOLPE OU REVOLUÇÃO ?
O painel de personalidades militares que foi apresentado ao País na noite de 25 de Abril de 1974 não era garantia de coisa nenhuma. De coisa nenhuma para além da certeza da queda de Marcelo Caetano. Certeza de mudança estava só no Governo. Spínola, Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo, Rosa Coutinho, Jaime Silvério Marques e Galvão de Melo compunham um fresco velho e algo sinistro. Tinham todos um ar bélico, uma postura heróica e medonha. Eram eles a Junta de Salvação Nacional, um nome com sabor a autoritarismo e a esconder duvidosos desígnios. A declaração que fizeram foi baça e sucinta, mas foram claros a declarar “o respeito pelos compromissos decorrentes dos tratados em vigor.”

O mal estar no seio das Forças Armadas era um facto e tinha uma causa, um pretexto, e um livro.
O livro de Spínola “Portugal e o Futuro” desenvolvia a tese da Pátria transnacional conectando a componente europeia e as componentes africanas num sistema federalista que terminava com a ideia de mãe-pátria, mas pressuponha a fratria familiar para um Portugal federalista ou federalizado. Transportava, apesar do irrealismo histórico, uma mensagem nova, ou inovada, que rompia com dogmas de “Angola é Nossa,” “Pátria não se discute, defende-se”e outras lorpices em que foi pródigo o Estado Novo. Estava ali uma alternativa vestida da autoridade de quem tinha lutado nas batalhas, de quem tinha condecorações e louvores pelos saberes e pelos fazeres militares e vinha agora sustentar, com toda a autoridade do saber de “experiência feito,” que a questão colonial não comportava uma solução militar.

Entretanto o PS, acabadinho de se fundar na Alemanha, continuava com a expressão dos vinte fundadores ou pouco mais, e berrava contra as estruturas do capitalismo e os interesses do imperialismo. Vivia de fantasias e de esperanças sob as suspeitosas bênçãos da social democracia. Soares é, aliás, um inveterado paisano, e nunca seria capaz de dar importância maior a obra de militar.
O PCP sonhava (ainda sonha?) com a insurreição popular, acusava Spínola, pela voz do próprio Cunhal, de fascista dissidente, e vivia apavorado (e com razão!) com a psicose do efeito Pinochet.
O pretexto era de natureza corporativa, mexia com valores, tocava a dignidade das Forças Armadas e complicava as promoções militares.
A guerra colonial veio exigir um esforço acrescentado em homens e cabedais. Os militares do quadro não chegavam para as encomendas e era necessário o recurso a milicianos. Foram estes, em boa verdade, que aguentaram a guerra de picadas e de trilhos no quotidiano operacional de patrulhamento, de emboscadas e de abastecimento, operações que na quadrícula se faziam ao nível de pelotão. Os militares do quadro só apareciam ao nível de capitão para comandar companhias cujo empenhamento operacional era raro. Mesmo assim, as necessidades excediam a oferta, e o regime procurava atrair os alferes milicianos à frequência de cursos militares para continuação nas fileiras, em condições tentadoras de progressão na carreira. Isto contrariava a ética militar e descontentava todos os que vinham da academia que viam atrasar o seu acesso e o seu sucesso. Este entupimento das carreiras gerava natural e generalizado descontentamento, e irmanava os militares do quadro num movimento de auto-protecção contra os intrusos e os postiços milicianos. Movimento legítimo e fortemente agregador.

A causa estava na guerra. Embora o militar seja um profissional da guerra, o militar estava cansado do beco sem saída, das comissões sucessivas, da transumância periódica, do fora e dentro da família, do marcar passo da insegurança, do camuflado como farda, de dormir na tarimba com a escopeta ao lado, da caldeirada do rancho, da falta de mulheres (bonitas ou feias, tanto faz), da quissonde, da marabunta, da salalé, das cobras na caserna, da ração de combate, do gorgulho no feijão e no arroz, do inimigo que flagelava dia sim dia não, e que nunca se mostrava, de todas as porcarias e chatices em defesa de uma terra que não lhe pertencia. Embora o militar seja um profissional da guerra e a guerra seja tudo isto, sabe muito melhor o ar condicionado, o desfile com cagança, o bridge, o bom whisky, a farda de gala ornada de amarelos areados pelo ordenança.

Em 1974 o militar podia armar ao reviralho, virar as fisgas ao contrário, baldear o governo e regressar ao quente e cómodo agasalho do soberbo quartel.
Em 1974 o militar podia mudar o regime porque os militares são sempre, pela força dos seus argumentos bélicos, o sustentáculo dos regimes.
E assim se fez. O que veio depois, as dinâmicas sociais que desenvolveram PREC´s e liquidaram PREC´s, a força da Democracia que foi cavando alicerces, a vida diurna da liberdade, podem não ter nada a ver com as motivações que sepultaram um regime, já apodrecido, na alvorada de 25 de Abril de 74.
Mas é a História que deve explicar como tudo aconteceu.
Com urgências.
Para que não haja fantasia ou suspeição nos livros que hão-de vir ensinar aos vindouros tantas mentiras, como as que se fazem hoje para negar o holocausto!
1 comentário:
Houve então vários 25 de Abril?
Ou motivações ainda criptadas para o 25 de Abril?
Ou Foi tudo um golpe de caserna e as razões políticas saltaram depois?
De facto aquele painel de guardas da revolução era tenebroso.....
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